Brasil
Ouça. Aja. Cuide.
Você saberia reconhecer os sinais de abuso infantil? E saberia o que dizer - ou não dizer - a uma criança que revela algo tão sério? Aqui, um guia necessário para proteger
Por Helena Alevato - Nova Lima

Foto: Freepik
Na semana passada, a reportagem de capa do Jornal Banqueta trouxe à tona o relato corajoso de uma mãe nova-limense que descobriu que a filha de 10 anos foi vítima de abuso sexual no ambiente escolar. E é necessário ressaltar um fato importante: essa revelação foi possível graças ao diálogo que a mãe teve com a criança, certamente construído ao longo do tempo com escuta atenta, confiança e abertura para conversas consideradas delicadas por muitas famílias. O impacto da reportagem mobilizou leitores e escancarou a urgência de se falar, sem medo, sobre proteção infantil. Afinal, a prevenção começa dentro de casa – e o silêncio, muitas vezes, é o maior aliado da violência.
Após a reportagem de denúncia feita na última semana e considerando a campanha de Maio Laranja, o Banqueta se aprofunda no tema com a colaboração da psicóloga nova-limense Vitória Lisboa. De forma clara, acolhedora e direta, Vitória oferece orientações fundamentais para pais, mães, cuidadores e profissionais: como iniciar conversas com as crianças sobre o corpo, privacidade e consentimento; quais sinais podem indicar abuso, mesmo quando a criança não verbaliza; o que dizer - e o que não dizer - quando uma revelação acontece; e quais são os caminhos corretos para buscar ajuda e proteger a criança. A reportagem a seguir é um convite à escuta e à ação, trazendo informações que podem transformar o modo como nos relacionamos com as crianças à nossa volta. E, principalmente, ferramentas para impedir que mais infâncias sejam violentadas em silêncio. Leia. Compartilhe. Cuide. A responsabilidade é de todos.
Diálogo
Para a psicóloga Vitória Lisboa o primeiro passo na prevenção do abuso sexual é estabelecer uma comunicação aberta e contínua com as crianças. Segundo ela, essa conversa deve começar ainda na primeira infância e precisa fazer parte da rotina familiar. “A chave para uma comunicação eficiente com as crianças é começar desde cedo e de maneira natural, sendo importante utilizar uma linguagem com a qual a criança já está habituada. Desde a primeira infância, ensine a criança os nomes corretos das partes do corpo, incluindo as genitais, explique noções de privacidade e consentimento. Deixe claro que o corpo pertence somente a ela”, enfatiza.
Laço do Maio Laranja
Desde a primeira infância, ensine a criança os nomes corretos das partes do corpo, incluindo as genitais, explique noções de privacidade e consentimento
Vitória Lisboa
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Sem tabus
A psicóloga reforça que o medo ou vergonha de abordar temas relacionados à sexualidade pode ser um risco. “Tenha em mente que a sexualidade é parte da vida. Introduza o tema de forma gradual e sem tabus. Foque em responder às perguntas da criança com sinceridade e simplicidade. Enfatize que as partes íntimas são especiais e devem ser protegidas, e não associadas a algo ‘sujo’ ou ‘errado’. O objetivo maior é que a criança sinta que pode perguntar qualquer coisa aos pais, sem medo de julgamento. Pense assim: se a criança te observar evitando o tema da sexualidade, ela vai aprender que é algo a ser evitado, logo se algo acontecer a criança vai evitar trazer o assunto à tona e isso pode ser muito perigoso”, explica. Aqui, o segredo é naturalizar o tema e responder com honestidade às dúvidas das crianças.
Uma abordagem para cada idade
De acordo com Vitória, a abordagem sobre o corpo, privacidade e sexualidade deve ser ajustada à fase do desenvolvimento da criança. “Na primeira infância o foco é nos nomes das partes do corpo; que o corpo é dela e a importância de dizer ‘não’. Por volta dos 4 anos, reforce as noções de privacidade, toques permitidos e não permitidos, e quem são os adultos de confiança. Comece a introduzir a ideia de segredos bons (surpresas) e segredos ruins (aqueles que fazem sentir medo ou vergonha e que devem ser contados). Por volta dos 7 aos 10 anos aprofunde a conversa sobre consentimento e limites: explique que existem diferentes tipos de toques e que alguns são inapropriados, mesmo que sejam de pessoas conhecidas. Na pré-adolescência e adolescência a conversa deve ser mais aberta sobre sexualidade, relacionamentos saudáveis, respeito mútuo, consentimento em relações íntimas e prevenção de gravidez e ISTs”.
Vitória Lisboa
Sinais de alerta: comportamento
Quando perguntada sobre os sinais de alerta que podem indicar abuso, a psicóloga lista mudanças sutis e importantes. Ela afirma que o olhar atento dos adultos é fundamental. “Os sinais podem ser sutis e variar de criança para criança, mas existem algumas coisas observáveis que podem chamar a atenção: mudanças bruscas de comportamento; dificuldades para dormir ou mudanças no padrão de sono; regressão do nível de desenvolvimento; queda no desempenho escolar; brincadeiras com teor sexual incompatível com a idade; lesões físicas inexplicáveis; queixas físicas sem causa aparente. Enfim, se você tem uma criança na sua vida, esteja atento a ela, mudanças inexplicáveis e repentinas chamam a atenção, não ignore isso”, alerta.
Mudanças emocionais
Vitória explica que, além das mudanças comportamentais, os impactos emocionais também são indicadores importantes e, por vezes, mais silenciosos. “A ansiedade pode aparecer, e as crianças podem se tornar excessivamente preocupadas, tristes ou desinteressadas em atividades que antes gostavam. Podem se tornar irritáveis ou agressivas. Aparições de medos e inseguranças novos ou desproporcionais também devem despertar um alerta, e o isolamento social (afastar-se de amigos e familiares) também é um fator a ser observado. Em adolescentes, é importante ter atenção com comportamentos autodestrutivos: pode haver automutilação ou pensamentos suicidas, a baixa autoestima também pode aparecer, trazendo sentimento de culpa, vergonha ou desvalorização”, salienta.
As crianças expressam o que viveram através de desenhos ou brincadeiras, se você estiver atento poderá ver sinais caso algo esteja errado. Confie na sua intuição: se algo parece errado, investigue
Vitória Lisboa
Atente-se
No consultório, Vitória costuma orientar os pais a observar o comportamento lúdico das crianças, que muitas vezes revela o que elas não conseguem verbalizar. Ela acredita que a intuição dos adultos também é uma ferramenta valiosa. “A observação atenta e a escuta ativa são fundamentais. Você conhece a sua criança? Veja ela, ouça ela. Uma dica que eu sempre dou no consultório é observar o brincar, as crianças expressam o que viveram através de desenhos ou brincadeiras, se você estiver atento poderá ver sinais caso algo esteja errado. Confie na sua intuição: se algo parece errado, investigue. Abra espaço para a criança se expressar, às vezes um simples ‘parece que você está triste hoje, quer conversar?’ pode abrir a porta”, relata a psicóloga.
O que fazer em caso de suspeita
A psicóloga enfatiza que, em caso de suspeita, os adultos devem manter a calma e colocar o bem-estar da criança em primeiro lugar. Segundo ela, a forma como os responsáveis reagem pode determinar o impacto emocional do acontecimento. “Tenha calma, mas esteja determinado a resolver a questão, entenda que a sua reação é crucial para a criança e que ela deve ser o principal foco nesse momento, sei que não é um momento fácil para ninguém que tenha contato com uma criança ou adolescente que esteja passando por uma situação de abuso, mas lembre-se: a dor dela precisa ser acolhida, talvez até antes da sua”.
O que dizer para a criança
Ao ser questionada sobre como conduzir o diálogo com a criança que revela um abuso, Vitória é clara: o mais importante é acreditar nela. Ela também alerta que algumas frases que podem gerar mais dor e confusão. “Acredite nela incondicionalmente e garanta a sua proteção. Diga: ‘eu acredito em você.’ ‘Obrigada por me contar.’ ‘Não é sua culpa.’ ‘Vou te proteger.’ ‘Vamos procurar ajuda para que isso nunca mais aconteça.’ Uma das piores coisas que se pode fazer é duvidar da criança e fazê-la duvidar de si mesma. Dizer ‘você tem certeza?’ ou ‘por que você não me contou antes?’ só fará com que ela se sinta culpada e invalidada. Duvidar da criança ou tentar esconder a situação é como proteger o segredo do abusador, não faça isso”, avisa.
O cuidado com as crianças e adolescentes é responsabilidade coletiva. Proteger nossas crianças é um dever que todos compartilhamos
Vitória Lisboa
Como dar encaminhamento
Após acolher a criança, os responsáveis devem buscar imediatamente os canais adequados para garantir sua proteção. “Após a conversa, a prioridade é a segurança e o bem-estar da criança. Procure ajuda imediatamente, você pode acionar o Conselho Tutelar, que é o órgão responsável por zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, e eles te darão direcionamento. O disque 100, para denúncias de violações dos direitos humanos, também acolhe denúncias de abuso infantil. Além disso, existe Delegacia Especializada na Proteção da Criança e do Adolescente, não deixe de procurar esse serviço para registro da ocorrência e investigação policial. E o mais importante: afaste a criança do agressor. Se o agressor for da família ou alguém próximo, é fundamental garantir que a criança esteja segura e não tenha mais contato, mesmo que uma investigação ainda esteja em curso”.
Escola e rede de proteção
Vitória também ressalta a importância das instituições escolares e da rede de proteção. “A escola é um ambiente central para a prevenção e identificação de abusos infantis, já que a criança passa muito tempo lá. Implementar programas de educação sobre o corpo, privacidade e consentimento no currículo, adaptados às faixas etárias é imprescindível para os espaços escolares, promovendo um ambiente seguro onde os alunos se sintam à vontade para buscar ajuda”, observa. “Também é essencial que todo profissional que trabalha diretamente com crianças e/ou adolescentes receba uma formação contínua sobre os diferentes tipos de abuso, seus sinais, e as melhores práticas de abordagem e acolhimento. Mas não podemos esquecer que lidar com casos de abuso infantil é emocionalmente desgastante para todos. Esses profissionais precisam de acompanhamento psicológico e supervisão para processar as informações e evitar o esgotamento que seria prejudicial para todos os envolvidos”, acrescenta.
Dever coletivo
Por fim, a psicóloga deixa um recado contundente. “O cuidado com as crianças e adolescentes é responsabilidade coletiva. Proteger nossas crianças é um dever que todos compartilhamos. O Maio Laranja é um lembrete disso, mas continuamos a ser responsáveis durante todo o ano. Se você conhece uma criança que está em uma situação de abuso, acolha e proteja. Aja o mais rápido possível. Se você tem uma suspeita, procure os responsáveis, denuncie. Não importa o mal-estar que isso gere para a família, o abusador ou para a comunidade: a criança é sempre prioridade”, encerra. Vitória atende na Rua Melo Viana, 285, no Centro da cidade. Os atendimentos podem ser agendados pelo número (31) 9.9200-8904 ou pelo perfil @psivitorialisboa nas redes sociais.
Se você tem uma suspeita, procure os responsáveis, denuncie. Não importa o mal-estar que isso gere para a família, o abusador ou para a comunidade: a criança é sempre prioridade
Vitória Lisboa