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Carnaval, samba, verdade e memória
Série Escavando a Verdade, do Jornal Banqueta, contribui na decisão da temática dos sambas-enredo das escolas de samba de Nova Lima. Em 2026, agremiações exaltarão a herança negra e operária da cidade
Por Fred Sarti - Nova Lima

Foto: Prefeitura de Nova Lima/Desfile do Unidos do Rosário em 2024
A série Escavando a Verdade, publicada semanalmente há mais de um ano pelo Jornal Banqueta, tem reverberado individualmente e coletivamente no município e gerado diversos frutos. Recentemente, foi divulgado que as temáticas dos sambas-enredos para 2026 das duas escolas de samba que resistem em Nova Lima - Unidos do Rosário e União do Morro - trarão as histórias não contadas da cidade. Intitulados “O Rosário sobe o Boa Vista em busca de Timbuctoo. A Nova Lima negra que a história não contou” (Unidos do Rosário) e “Somos a Riqueza Dessa Terra” (União do Morro), os sambas-enredos resgatam memórias apagadas, como a contribuição dos povos originários, dos povos negros escravizados na mineração e a força dos mineiros de Morro Velho. E, segundo os representantes das duas agremiações, a decisão da temática para o Carnaval do ano que vem se deu pelo impacto provocativo causado pela série Escavando a Verdade – mesmo porque o jornalismo também serve para incomodar.
Escavando a Verdade
Durante mais de um ano o Jornal Banqueta tem se dedicado, de forma aprofundada, a trazer reportagens semanais na série que foi intitulada Escavando a Verdade, produzida pela jornalista Mariana Lopes. A ideia foi, e ainda é, trazer a história não contada dos povos negros escravizados ao Golpe Empresarial-Militar de 1964 em Nova Lima e também celebrar a contribuição dos povos negros na construção da cidade e da identidade nova-limense. No decorrer do tempo, a série também se transformou em uma documentário audiovisual, com sete episódios produzidos e disponível no YouTube da TV Banqueta, no intuito de registrar a oralidade dos moradores desta terra, para amplificar as narrativas com outras perspectivas sobre a origem deste município. Dona Geralda Souza, entrevistada no quarto episódio da obra audiovisual, é um exemplo da importância de eternizar essas vozes no semanário – ela faleceu em fevereiro de 2025 e em sua entrevista compartilha memórias de uma antiga amiga que teve na adolescência, Maria Cirilo, que foi escravizada pela mineradora Saint John Del Rey Mining Company
Relembre
A série jogou luz sobre problemas atuais construídos desde o passado como, por exemplo, em como atualmente a AngloGold Ashanti transformou a “vocação” minerária em (especulação) imobiliária e o município, hoje, possui um grande déficit habitacional. Foi relembrado as diversas formas de ceifar a vida dos mineiros: da silicose ao fogo falhado – não à toa Nova Lima ficou conhecida como A Cidade das Viúvas. O município também teve outro apelido: A Cidade Vermelha, por causa da grande quantidade de comunistas movimentando a política local; também por isso, grandes lideranças foram assassinadas, inclusive por capangas da mineradora e pelo próprio Estado, tanto no Estado Novo de Getúlio Vargas, na década de 40, e no Golpe Militar, em 64. Também foi trazido, por exemplo, a pesquisa intitulada Museu do Carnaval Nova-limense, que reforça a importância das corporações musicais para essa manifestação cultural que foi africanizada no Brasil; a história de Waldir dos Santos – o sambista operário; dentre outras centenas de histórias nova-limenses que estão escondidas em galerias no subsolo.
Provocador
Com toda movimentação fomentada durante mais de um ano, os representantes das duas agremiações - Unidos do Rosário e União do Morro - trouxeram um reconhecimento importante ao jornal, ao contarem que a série Escavando a Verdade fez um papel provocador que também contribuiu com a decisão da temática do samba-enredo de 2026 dessas escolas. “Essa edição histórica do jornal talvez tenha sido a primeira luz acessa na mente da equipe de direção artística do Carnaval da Unidos do Rosário. Era encantador e ao mesmo tempo revoltante ler cada linha de uma história que, ao mesmo tempo em que é rica culturalmente, é doída e sofrida. Era um sentimento de que ‘todos precisam saber disso’, sabe? E nada melhor do que uma Escola de Samba para ajudar a contar”, salienta o professor, vereador e enredista da Unidos do Rosário, Pedro Dornas.
Vereador Pedro Dornas/Arquivo pessoal
O presidente da União do Morro, Kaique Neves, completa: “O Escavando a Verdade foi um verdadeiro farol – nos ajudou a enxergar com mais clareza o quanto ainda havia para ser contado. Foi um gatilho muito importante, porque o jornal ajudou a abrir feridas escondidas e mostrou que ainda há muita coisa da história de Nova Lima que precisa ser contada do jeito certo. Foi como acender uma faísca”.
Em busca de Timbuctoo
Diante disso, a sinopse do samba-enredo da Escola de Samba Unidos do Rosário prevê um encontro de quilombos, entre a comunidade do Rosário e a do Boa Vista. “A ideia principal gira em torno da busca por Timbuctoo. Essa região foi uma área nas proximidades do bairro Boa Vista, onde viviam pessoas negras escravizadas da mineração. Mesmo com as perversidades da época escravagista, resistiram em todos os aspectos da vida e de sua cultura. A partir da busca por Timbuctoo, exaltaremos as tradições e legados do povo negro para Nova Lima. Por fim, reconheceremos Timbuctoo não apenas como um local geográfico, mas como um ideal de uma sociedade negra, livre, que vive com dignidade e com prosperidade. E por mais que não se tenha hoje registros físicos da Timbuctoo de outrora, a Unidos do Rosário reconhecerá que esse sonho de Timbuctoo vive dentro de cada um de nós e é nosso dever construí-la todos os dias”, detalha Pedro.
Mapa do Timbuctoo no alto do Boa Vista/Centro de memória
Coração da terra
Em consonância, a União do Morro também traz como temática a riqueza negra encontrada em cada canto de Nova Lima. “A ideia é evidenciar que a verdadeira riqueza de Nova Lima nunca foi o ouro – foi, e sempre será, o seu povo. O samba vai contar a história que ficou de fora dos livros: a dos povos indígenas, dos negros escravizados, dos operários das minas, das mulheres de axé e de todos que fizeram essa cidade acontecer, com suor, luta e resistência. É um desfile para exaltar quem tem estado invisível, mas que é o coração desta terra”, evidencia o presidente da agremiação Kaique Neves.
Kaíque Neves/Arquivo pessoal
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Urgências
O carnavalesco conta que a vontade de trazer essa temática nasceu há mais tempo, assim quando a União do Morro foi retomada, numa conversa entre ele e Carlos Miguel. “Já naquele momento existia o desejo de fazer um enredo que valorizasse as pessoas desse chão e, em paralelo, que também fizesse uma crítica à forma como a história exaltou apenas as figuras da colonização inglesa, apagando tanta gente. Esse tema ficou guardado no peito. E depois do desfile de 2025, que homenageou a centenária Corporação Musical União Operária, e os maestros Zé Lopes e Zé Fuzil - reforçando a importância de trazermos e valorizarmos a história local - essa vontade virou urgência, porque sentimos que era necessário continuar a contar nossas histórias, exaltando quem sempre foi deixado de lado”, conta Kaique.
Contar a história não contada
Inclusive, a série Escavando a Verdade também já trouxe a importância das corporações musicais para Nova Lima. Por exemplo, em como a banda União Operária é uma rica herança dos homens negros descendentes de pessoas negras que foram escravizadas pela mineradora e em como o seu legado perpassada pelo tradicional Carnaval Nova-limense, mas também pela Charanga do Villa, dentre outras manifestações culturais tradicionais na cidade. Kaique conta que, diante da repercussão positiva do samba-enredo de 2024 da escola, sobre a União Operária, e percebendo que há uma ferida no povo nova-limense que anseia em contar sua própria história, evidenciado pelo Escavando a Verdade, a agremiação se perguntou: por que não usar o samba-enredo para contar a história que a história não contou?
Interior da Mina de Morro Velho/Centro de Memória
Homenagens
É também nesse sentido que a Unidos do Rosário decidiu subir o morro em busca de Timbuctoo. “O Rosário é uma escola que está nos pés de Nossa Senhora do Rosário e sob a sua proteção. Nada mais justo que olhar para dentro da nossa comunidade e de seu entorno, reconhecer a influência que até hoje sofremos dessa Nova Lima que a história contou muito pouco e que é tão viva no nosso dia-a-dia”, salienta o enredista. E essa história silenciada tem o ponto de partida em África – Angola, Congo, Costa da Mina, Benguela, entre outros territórios. “Os bairros do Boa Vista e do Rosário serão os cenários, além dos regos e da Mata Atlântica, teremos as galerias de mineração. Mas o protagonismo dessa vez é para quem a história não registrou seus nomes de origem e que tiveram a dignidade subtraída. São negros e negras escravizados e anônimos que fizeram a riqueza de Nova Lima tal como conhecemos hoje. Passaremos por suas culturas, seus legados, tradições, principais fatos históricos locais até chegar em pessoas negras de destaque que conhecemos hoje e serão homenageados como descentes da dinastia da Timbuctoo nova-limense”, salienta Pedro.
Maxakali e Pataxó
A União do Morro ainda dará um passo atrás e trará histórias sobre povos que não vieram nos navios negreiros, mas já estavam aqui. “Lembraremos os primeiros habitantes da nossa terra, que são os povos originários, Maxakali e Pataxó, que cuidavam desse chão com respeito e sabedoria. Depois, destacamos a chegada do povo negro, arrancado da África e que, mesmo com dor, trouxe força, fé, cultura e conhecimento, e resistiu de todas as formas. Também vamos homenagear os operários das minas, gente que enfrentou a escuridão e diversos riscos para erguer a cidade com as próprias mãos. São eles os verdadeiros construtores de Nova Lima. É essa memória que queremos honrar – com canto, com dança, com verdade”, afirma Kaique.
Braz Coqueiro/Arquivo Centro de Memória
Fontes de pesquisa
Claro que, para além do Escavando a Verdade, outras contribuições para a construção desses potentes sambas-enredos também foram essenciais. “O livro Tempo, Aura e Vestígios, de Maysa Gomes; os estudos e página no Instagram do coletivo Timbuctu; os relatos da viagem de Richard Burton e sua esposa Isabel a Nova Lima; o documentário Além do Ouro – Onde está Timbuktu; o artigo Governo dos Escravos na mina de Morro Velho, de Alisson Eugenio; entre várias outras fontes estão sendo estudadas”, conta Pedro. “Também conversamos com pessoas que são referência na luta contra o racismo e contra a intolerância religiosa, dentre outras batalhas que não podem ser caladas, como Carlos Miguel, Mariana Lopes, João Pedro ‘Pelezinho’, Mariana Campos, Janaína Lírio e Juliana Rocha – vozes potentes que ajudaram a moldar esse caminho”, cita Kaique. Um estudo em comum, citado por ambas as agremiações, foi o documentário Firma Ponto: Saberes Circulares, produzido pela Associação Centro Espírita Pai Benedito de Aruanda (ACEPBA), com produção de Janaína Lírio e direção de Mariana Lopes, disponível no YouTube da ACEPBA.
Educação popular
O enredista da Unidos do Rosário é categórico ao salientar a importância das escolas de samba como uma ferramenta de educação popular. “Mais do que uma manifestação cultural, as escolas de samba são um espaço de construção de conhecimento, de memória e de identidade coletiva. Em uma cidade marcada por silenciamentos históricos, o samba se torna um instrumento poderoso para romper esse silêncio. Ele dá voz a histórias esquecidas, denuncia injustiças e celebra heranças culturais que muitas vezes não encontram espaço nos currículos escolares formais. As escolas de samba tem uma liberdade artística muito própria. Os enredos contados podem ser sátiras, ironias, fantasias, indignações, histórias e estórias que podem cumprir um papel social. As agremiações têm percebido o seu alcance, a sua capacidade de influenciar a pauta social e de formar uma comunidade por dentro, por meio da revolução da arte e da alegria”, salienta Pedro.
Retirar o colonizador do pedestal
Kaique evidencia também que escolher essa temática é uma forma de tentar reparar a história. “É hora de tirar o colonizador do pedestal e colocar no centro da avenida os verdadeiros heróis: os operários das minas, os quilombolas, as mulheres de axé, os pais de santo, os tambores que nunca se calaram. Esse desfile será uma forma de reparação simbólica”, frisa o presidente da União do Morro. Pedro encerra: “recontar uma história considerando outro ponto de vista senão o dominante, aquele eivado de poder e da riqueza que oprimiu, amedrontou e tirou muito das nossas terras, é mostrar que seguimos resistindo. Essa é a natureza das escolas de samba: mais do que ofertar um grande espetáculo a céu aberto, estaremos cuidando da memória e oferecendo referências que orgulham, que fazem as pessoas se reconhecerem, se identificarem e valorizarem a sua própria história e tradições”.